Mito, de acordo com o Dicionário Priberam, é uma "[h]istória, explicação ou fenômeno ficcional relatado e divulgado como verdadeiro, geralmente por alegadamente ter uma fonte ou origem vagamente relacionada com o relator ou divulgador". Ou seja, o mito expressa algo que supostamente seria verdadeiro, mas não é.
É isto que ocorre com a área de atuação do cirurgião-dentista; existe um mito de que o cirurgião-dentista teria como sua área de atuação apenas a região da "boca e do dente".
Como todo mito, isto não é verdade.
A Lei da Odontologia (Lei nº. 5.081/1966) afirma, em seu art. 6º, I, que compete ao cirurgião-dentista "praticar todos os atos pertinentes a Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso regular ou em cursos de pós-graduação".
De forma complementar, o Conselho Federal de Odontologia (CFO), em mais de uma oportunidade, já classificou que a área de atuação do cirurgião-dentista é a região anatômica da cabeça e do pescoço (conforme resoluções nº. 198/2019; https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%C3%87%C3%83O/SEC/2019/198 e nº. 230/2020: https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%C3%87%C3%83O/SEC/2020/230).
Nesta perspectiva, é um mito afirmar que cirurgião-dentista apenas atua na região da "boca e do dente".
Pois bem. Esclarecida que a área de atuação do cirurgião-dentista engloba o pescoço, passamos a aprofundar se o procedimento da platismoplastia está na área de atuação e, se sim, se seria permitido de ser realizado por dentista.
Platismoplastia é uma intervenção cirúrgica na região do pescoço, em que há um reposicionamento do músculo platisma, com o objetivo estético de atribuir uma aparência mais jovem e firme ao pescoço.
Em consulta à legislação legal e infralegal (resoluções do CFO), não encontramos vedação expressa à realização do procedimento por cirurgiões-dentistas.
No entanto, o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CRO/SP) tem tido o entendimento de que a platismoplastia, assim como a cervicoplastia, são derivações do procedimento ritidoplastia, que está expressamente proibida na Resolução nº. 230/2020.
Ocorre que o entendimento de que a platismoplastia é um procedimento proibido de ser realizado por cirurgiões-dentistas não resiste a uma análise jurídica mais aprofundada:
(1) Não compete ao CFO determinar quais procedimentos estão ou não na alçada do cirurgião-dentista. Esta é tarefa da legislação (Lei nº. 5.081/1966) que, expressamente, afirma, em seu art. 6º, I, que cabe ao cirurgião-dentista realizar tudo que aprendeu em cursos regulares ou de pós-graduação. Se o procedimento foi ensinado e está na área anatômica do cirurgião-dentista, ele está legalmente habilitado para realizá-lo;
(2) A literatura tradicional da cirurgia plástica classifica a ritidoplastia (rhytidoplasty) como facelift , isto é, "surgical procedure aimed at correcting the fallen face and the sagging neck returning the aesthetic and youthful appearance of the skin, also significantly improving the wrinkles of the face" (conforme publicação disponível em: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-030-57973-9_62
). Ou seja, a ritidoplastia não se equipara à platismoplastia, na medida em que a primeira se associa à face e a segunda ao pescoço;
(3) Uma regra tradicional de hermenêutica jurídica (interpretação do Direito) é a de que "norma restritiva de direitos deve ser interpretada restritivamente". Portanto, fazer caber platismoplastia dentro do conceito de ritidoplastia seria dar um caráter ampliativo a uma norma restritiva -- e, portanto, contraditório às regras básicas de hermenêutica.
Em resumo: platismoplastia é sim permitida aos cirurgiões-dentistas, não obstante os conselhos regionais de odontologia venham, como regra, interpretando de forma contrária e, a nosso sentir, ilegal.